A porta da casa se abriu e a pessoa que eu havia conduzido fez sinal para que me aproximasse. Saí do carro com má vontade e entrei na casa modesta. Na pequena sala estava sentada uma senhora de uns quarenta anos, modestamente vestida, em cuja figura se destacavam os cabelos longos e os olhos pretos, penetrantes.
Foi-me apresentada como “dona Neiva” e eu, muito a contragosto, aceitei o cafezinho. Mas não podia despregar os olhos dela. Fez-se silêncio por alguns minutos, e ela ficou me olhando, com ar pensativo. Minha passageira falava sem cessar, elogiando as qualidades da anfitriã, mas eu mal a ouvia. Entre a dona da casa e eu havia se estabelecido um rapport, e o mundo cessara momentaneamente de existir. Depois das amenidades de costume, ela me surpreendeu com suas palavras:
- O senhor está sofrendo muito. – disse ela – Será que não poderia voltar aqui para conversarmos?
- Como é que a senhora sabe? – retruquei – O quê a senhora está vendo?
- Volte aqui e eu lhe direi. Veja se pode voltar hoje à noite. – respondeu ela – Venha que eu quero ver o seu quadro espiritual.
Despedi-me apressado, meio confuso, e o resto do dia passei mais desligado que de costume. Aquela cena e a figura de dona Neiva persistiam na minha mente e meu coração acelerava quando me lembrava da visita. Tão pronto escureceu, dirigi-me para Taguatinga.
Fui admitido na mesma sala, e desagradou-me o fato de nela existirem outras pessoas. Entrei na conversa banal com relutância. Nesse tempo eu mal tinha a capacidade de ser sociável. Dona Neiva conversava com todos, e eu já desanimava da possibilidade de falar com ela a sós. Embora preparado para mais uma decepção, minha curiosidade persistia. Eram quase onze horas da noite quando ficamos relativamente sós. Digo relativamente, porque as pessoas mais íntimas se haviam retirado para a cozinha, em companhia dos familiares da dona da casa.
Ela, sentada com simplicidade, cruzou os braços sobre o busto e perguntou meu nome e idade. Permaneceu em silêncio alguns minutos e, depois, começou a falar.
- Seu Mário, – disse ela – o senhor é uma pessoa insatisfeita, mas tem uma grande missão a cumprir. Sua vida vai mudar completamente, e o senhor irá encontrar a realização que tanto tem procurado. A vida tem sido muito dura com o senhor, mas agora chegou a sua hora. Tire essa idéia de suicídio da cabeça. O senhor tem muito a realizar.
Dito isso, ela calou-se e permaneceu me olhando como se não me visse.
Meio constrangido diante do seu silêncio e descrente do que ouvira, desandei uma torrente de queixas amarguradas, eivadas de ironias, que ela ouviu pacientemente. De vez em quando fazia uma observação, e eu, mais desabafado, fui-me compenetrando de que não estava diante de uma criatura comum. Passado o primeiro momento de surpresa, notei que ela se havia referido a algumas passagens da minha vida íntima, traçando um quadro muito acurado da minha realidade. Isso, sem eu ter dito nada, ou quase nada, além do meu nome e idade!
Era evidente que eu estava diante de um fenômeno novo e com todas as características de autenticidade. Como para dirimir qualquer dúvida, toda vez que ela fazia alguma afirmação, acrescentava: “Digo-lhe em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo”.
Nossa conversa foi longa e profunda. Quando deixei a casa, já de madrugada, eu havia penetrado num mundo novo. Minha vida se apresentava, então, com um quadro nítido, com uma explicação para cada fato. De repente, tudo começou a fazer sentido, a ter uma conexão lógica. Senti-me invadido por forças desconhecidas e a divisar um mundo acolhedor, no qual havia um lugar para mim!
Passei o resto da noite insone e excitado. No dia seguinte, tão pronto pude livrar-me das obrigações mais prementes, corri para Taguatinga. Isso se repetiu nos dias subsequentes, e, três anos depois, em 1968, mudei-me para lá. Nesse ano, eu passei a ser um Doutrinador, de tempo integral, no modesto Templo da Ordem Espiritualista Cristã.
O que se passou nesse tempo é quase inarrável, pelas características do incomum, do fantástico e do admirável. Na aparência, tanto física como social, o meu novo mundo era absolutamente vulgar. Esse fato, esse aparente lugar comum, foi o que mais contribuiu para que meus familiares, os colegas e os poucos amigos me julgassem louco. Isso é bem compreensível.
A casa da Clarividente Neiva era um simples barraco alongado, que servia também como abrigo de menores abandonados. Na porta havia uma placa desbotada, com os dizeres: Orfanato Francisco de Assis. O Templo situava-se a três quarteirões de distância, no fim de uma rua sem calçamento. Feito de madeira que já fora usada várias vezes, só se distinguia como templo depois que a gente via seu interior. As pessoas que circulavam entre o Templo e a Casa Grande, como era chamada a casa de Neiva, eram, em sua maioria, de aparência modesta. Mas, havia sempre um ou mais carros vistosos, parados num ou noutro desses locais.
As atividades se concentravam no interior desses dois edifícios – o Templo e a Casa Grande. O freqüentador casual pouco via nessas atividades além do lugar comum. Mas, sob essa aparência casual, vulgar, passavam-se os maiores fenômenos espirituais. Ali se vivia entre dois planos, graças à Clarividente Neiva. Centenas de pessoas tinham suas vidas equacionadas e os mais complicados conflitos humanos tinham solução por seu intermédio. A vida quotidiana era um constante alívio de angústias.
Sem formalidades e com poucas obrigações, as pessoas iam passando por ela, de dia, de noite, nas circunstâncias mais banais, e saindo esperançadas, animadas. Só meu olhos atentos é que registravam o esdrúxulo, o fantástico de tudo aquilo. As próprias pessoas beneficiadas raramente sabiam avaliar devidamente o extraordinário das soluções que lhes aconteciam. Para a maioria, Tia Neiva era apenas uma criatura simples que atendia pacientemente e acalmava qualquer aflição. Poucos percebiam a complexa manipulação de forças que a solução de seus casos exigia.
A maneira casual e simples de Neiva dizer: “Vou pedir a Deus pelo senhor...” ou, então, “Pode deixar que eu vou fazer um trabalho e as coisas vão melhorar!”, desarmam a pessoa de tal forma que seu problema já começa a ser resolvido no momento da entrevista. Mesmo na intimidade, nos raros momentos que se ficava só, sem pessoas alheias à casa, a simplicidade e o tom casual continuavam.
Mas, meu espírito já estava desperto para a missão. Dia a dia minha mediunidade se abria e meus sentidos estavam alertas para tudo que acontecia. Pouco a pouco, num paciente e árduo trabalho de escuta e observação, eu colecionava fatos. Naquele ambiente pobre em seu exterior material, aconteciam os mais variados fenômenos mediúnicos. Os mais visíveis eram as incorporações, quase sempre feitas na intimidade, longe de olhos profanos.
As pessoas que viviam em torno de Neiva eram simples, sem escolaridade, e avessas à racionalização. Estavam tão acostumadas com os fenômenos, que nada as espantava. As presenças do mundo espiritual e do etérico invisível eram corriqueiras. Vez por outra, um fato mais contundente chamava a atenção e era comentado durante muitos dias, colorido com lances imaginosos. O que mais me impressionava era a inconsciência humana que cercava Neiva. E assim, com displicência, em meio a uma refeição ou um ato caseiro qualquer, eu colhia respostas de perguntas milenares, de interrogações que os filósofos e os cientistas faziam há muito. Minhas perguntas curiosas logo me granjearam o apelido de “o intelectual”.
Mas minha curiosidade era satisfeita com dificuldade. Cedo aprendi que a posição de um ser excepcional, que vive, simultaneamente, no transcendental e no temporal, é complexa e difícil em relação ao meio. Neiva via as coisas como elas realmente eram, mas não podia falar, mal podia comunicar. Tinha ela que se ater à capacidade de cada um e, principalmente, ao estágio evolutivo de cada interlocutor. Jesus definiu bem essa posição quando disse “que não se deve dar pérolas aos porcos”...
Outra coisa, que logo aprendi, é que as revelações não me eram feitas em função da minha capacidade intelectual ou cultural; eu as percebia por um merecimento de outra ordem, um estado sutil, notado apenas de relance. Assim é que entendi aquele máxima iniciática, que diz: “Quando o discípulo está preparado, o mestre aparece!”
Do contraste entre minha maneira de ser e a da Clarividente Neiva é que pude avaliar minhas imperfeições, meu atraso espiritual. Logo perdi as pretensões de ser um iniciado, pois a distância era muito grande. Dolorosamente, dia por dia, fui percebendo a luta que se travava em mim, entre a personalidade transitória e a individualidade transcendental; a luta entre eu e meu espírito; a briga entre Deus e o Diabo. Depressa, desisti de querer me tornar igual à Clarividente, pelo simples fato de ela viver em dois planos ao mesmo tempo.
Sua intimidade com o mundo do espírito, mediante um simples ato de mediunização, obriga-a a dar precedência aos atos do espírito. Eu, como todas as criaturas comuns, sou obrigado a longas lutas para tomar uma decisão e, mesmo assim, às vezes tomo a decisão errada. O ser comum decide por tentativas, erros e acertos. A Clarividente não erra, não pode errar, a não ser nas coisas que se referem a ela mesma. Uma palavra sua constrói ou destrói uma vida.
Eu conhecia alguma coisa do Espiritismo tradicional, principalmente do Kardecismo ortodoxo. Na minha ignorância, atribuía, subjetivamente, poderes extraordinários aos espíritos. Como todos que acreditam na comunicação com eles, eu achava suas palavras como mais credenciadas que as dos seres encarnados. Logo, porém, compreendi a precariedade dessa posição, diante de duas razões fundamentais: a imperfeição nas comunicações e o respeito que os espíritos têm pelo livre arbítrio humano.
A Clarividente Neiva é, também, um caso raro, só dado aos clarividentes, de ser um médium de incorporação inconsciente. Os espíritos que comunicam por seu intermédio o fazem livres de qualquer interferência dela, mas raramente dão conselhos ou orientação que decidam o assunto pela pessoa. Mantêm-se, sempre, no terreno do geral, das profecias que exigem elaboração do interlocutor para serem entendidas. Quando recebiam perguntas de ordem pessoal, davam orientação doutrinária e sugeriam à pessoa que consultasse Neiva, depois.
A Clarividente tem, como os espíritos, acesso ao passado e ao futuro das pessoas. Mas tem, sobre eles, a vantagem da vida humana, de viver quotidianamente e conhecer os valores correntes. Percebi, então, que Neiva não só consultava os espíritos, como era consultada por eles.
E, assim, fui vivendo e aprendendo. O mosaico de meu conhecimento, acrescentado da minha experiência de homem maduro, facilitaram minha “doutrinação” e me permitiram dirigir trabalhos mediúnicos. Aos poucos, tornei-me dirigente, não tanto pelas minhas qualidades, e, sim, pela minha disponibilidade. Eu conseguira, por alto preço, desligar-me das obrigações comuns e, assim, aos poucos, fui-me integrando na minha missão. Na proporção em que ela se delineava, eu compreendia melhor a profundidade da missão de Neiva.
Sua vida é a vivência crística integral, que vive e dá testemunho. É um superser constante, que nunca se cansa, nunca pára, e sua tolerância chega a ser irritante!
Depois de sete anos de vida ao seu lado, compreendi que esse ser representa o Espírito da Verdade, e que sua missão fundamental é nos preparar para o futuro. Entretanto, esse preparo não é feito por uma profecia específica, mas pela sua própria vida profética. A profecia é ela mesma, vivendo as coisas que transmite. E ela, agora, nos traz as notícias dos fatos que irão acontecer nas próximas três décadas, principalmente daqueles que irão ter seu ápice no ano decisivo de 1984!
Mário Sassi